Nunca é sobre amor…

Rafael Pagnon Cunha

Maria tem 30 anos. Trabalha no Comércio. Separada, Mãe solo. Envolveu-se com amigo do namorado de sua Colega. Convivem há alguns meses. Como é a regra, tudo começou bem. Grandes tempos juntos. Até que os cuidados que ele sempre teve consigo, estranhamente, se modificaram. Quando se deu conta,  deixara de conviver com sua Família. Churrascos de domingo rarearam. As amigas viraram fotos no arquivo do telefone. Deixou de escolher sozinha suas roupas. Tampouco os lugares onde poderia ir. Amigas com quem fosse autorizada sair. E o primeiro apertão no braço surgiu do nada. Após, o primeiro tapa. Outros seguiram-se. Até o basta. Até a ida à DEAM, onde solicitou - e recebeu, no mesmo dia, no Plantão do Judiciário - a medida protetiva que lhe retornou a liberdade, sorrateiramente subtraída…


Esse é o filme que assistimos, todas as tardes, na sala de audiências do Juizado de Violência Doméstica de Santa Maria. Mesmo roteiro. Diferentes personagens. Igual script. Por vezes, os personagens retornam, construindo minisséries. Ou séries, em diversas temporadas. Sempre, entretanto, o mesmo roteiro. 


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Histórias de controle. Manipulação. Dominação do homem sobre a mulher

Dramas protagonizados por incontáveis vítimas. E só algumas buscam proteção do Estado. Quase sempre apoiadas por outras mulheres. Outras sofrem caladas, no ensurdecedor silêncio de suas casas. Estudos indicam que vítimas de violência doméstica suportam anos até buscarem ajuda. Em um dos estudos, 2% de denúncias contavam menos de um ano de relacionamento; em 27%,1 a 5 anos; em 34%, 06 a 10 anos; e, em 37%, mais de dez anos de convivência. 


Mulheres de todas as classes sociais. Cor. Credo. Da adolescente à Avó. As mais variadas formações. Médica, empresária, diarista, granjeira, professora. Terrivelmente democrática violência doméstica. Mulheres que sofrem sozinhas, na invisibilidade do lar. Lugar que deveria ser de proteção. Transformado em prisão.


Longas semanas, meses ou anos, até a compreensão de que escolher roupas que possa usar, ou as amigas com quem sair, não constituem  cuidado. Até ficar claro que prometer sustento financeiro (“mulher minha não precisa trabalhar”) não é preocupação. As estratégias são as mais diversas. O afastamento da Família não constitui preocupação. Significa rompimento dos vínculos que podem acolher e dar suporte. 


Nada disso é sobre cuidado. Nunca é sobre amor. É sempre sobre controle

Cuidado com as roupas, com o tom de voz da mulher, com a reputação dela não são – nem nunca serão – amor. Constituem puro esquema de dominação.


Nem toda violência psicológica acaba em feminicídio. Mas todo feminicídio iniciou com uma – por vezes sutil – violência psicológica. 


Isso precisa ser escrito. Necessitamos falar de violência doméstica contra meninas e mulheres. É o que faremos, neste espaço, a partir de hoje. Conversas que desagradam. Desacomodam. Necessárias, porém. Bem vindos, leitores, a nosso mundo. Um lugar de lágrimas e dores. Dores de corpo e alma. Sofrimentos que passam de geração para geração. E, quase sempre, invisíveis. Não mais.

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